sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A turba da Uniban - Contardo Calligaris

A turba da Uniban

(5/11/2009)

Folha de São Paulo
CONTARDO CALLIGARIS

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As turbas têm um ponto em comum: detestam a ideia de que a mulher tenha
desejo próprio

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NA SEMANA passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso
noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi
para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava
de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.
O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se
aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça.
Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma
ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.
A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a
multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela
fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e
professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da
escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo
coro dos boçais escandindo: Pu-ta, pu-ta, pu-ta.
Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um justo
protesto contra a inadequação da roupa da colega. Difícil levá-los a sério,
visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado
na cabeça.
Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de
futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um
jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores)
vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim
como do árbitro, claro, sempre vendido) de duas maneiras fundamentais:
veados e filhos da puta.
Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas
as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é
simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia.
Ou seja, veados e filhos da puta são os insultos que todos lançam porque são
os que ninguém quer ouvir.
Cuidado: veado, nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto
assim que os ditos veados, por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no
sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser usados por
seus ofensores. Veado, nesse insulto, está mais para bichinha, mulherzinha
ou, simplesmente, mulher.
Quanto a filho da puta, é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da
torcida adversa sejam profissionais do sexo. Puta, nesse caso (assim como no
coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!)
gostar de sexo.
Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum:
é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou
seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.
O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como
assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de
querer? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um
sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um
prazer.
A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para
esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo
e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.
Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que
incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que
a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus
alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com
isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a
ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus
estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de Zorba, o
Grego, com redação obrigatória no fim?
Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no
feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu
ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em
particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos
um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as
mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.

Um comentário:

Maria Alessandra disse...

Quem dera esses jovens tivessem essa capacidade de mobilização pra coisas realmente úteis, como o desvio de verbas por exemplo.... merecia uma turba bem indignada!